terça-feira, 12 de maio de 2009

OUTRO TIPO DE SELVA

Abel Aquino

A região rural do entorno de Santa Cruz de Goiás era bastante montanhosa e os vales pareciam o interior de uma imensa fortaleza. A estrada que eu percorria margeava um estreito rio e, de vez em quando, via enormes construções cercadas por currais de madeira e com bicas d´água jorrando no quintal. Muitas dessas grandes casas estavam vazias, sem moradores. Mas a terra não estava abandonada, pois, da estrada, eu conseguia ver lavouras bem formadas e pastagens verdes dos dois lados.
Pelo que fiquei sabendo, pouca gente queria permanecer no campo. A maioria mudara para a capital, para a grande cidade.
No entanto, Seu Martim teimou em ficar e com ele toda a família. Encontrei-o sentado no degrau da escada da porta da frente de sua modesta casa. Enquanto conversava, suas mãos calejadas dobravam as abas do chapéu encardido, evitando trocar olhares comigo. Falava calmamente e sem grande preocupação.
- Até meu irmão foi embora, dizia. - Sei, continuou, que lá ninguém respeita ninguém; é tudo desconhecido... nem filho obedece pai. - Eu sei disso... concluiu, levantando os olhos rapidamente.
- Querem facilidades lá, argumentei.
- É - tudo é fácil por um lado e difícil pelo outro. Pra estudar é mais fácil e pra aprender coisa que não presta também é, ponderou.
- Você não deixa de ter razão, conclui.

O filho mais velho de Seu Martim devia ter mais de 18 anos e evitava conversar comigo. Era extremamente tímido. Imaginei que a cidade grande não seria realmente um bom lugar para ele viver; difícil se adaptar, adquirir os vícios da cidade.

Mais tarde, já pedalando pela estrada, fiquei pensando comigo:
A vida no campo pode ser monótona e pouca coisa acontece que não seja repetida, dia após dias. Mas a gente tem um bom controle sobre o próprio espaço. Na cidade precisa, a todo instante, manter relacionamentos com desconhecidos, tem que arriscar nas travessias de ruas, na possibilidade de ser assaltado, enganado. e, na maioria das vezes, sem condição de avaliar ameaças e perigos.
A grande cidade é que é uma selva, onde os perigos não são fáceis de avaliar, onde as feras são nossos próprios semelhantes.
Outra coisa que me impressionou, naquela região, foram as tais bicas d´água. Os moradores não faziam poço porque o terreno era muito rochoso. A solução foi construir suas casas próximas dos rios, dos riachos ou de nascentes. Do leito do rio abriam vala, desviando a água do curso e canalizando-a na direção da casa. A vala terminava em uma calha de madeira que elevava a água por um metro e a deixava cair na extremidade, formando a tal bica d´água. Ali podiam colher toda a água necessária, usando gamela, balde ou bacia. As roupas eram lavadas em gamelas ao lado da bica e batidas em prancha de madeira. A noite, a gente dormia ouvindo o barulho daquela água, misturado com o pio da coruja, dos curiango e o coaxar dos sapos.

Era princípio de ano e ainda havia mangas nos pomares abandonados. Parei minha bicicleta, abri a porteira e passei os olhos pela parte externa da casa; havia um enorme quintal e não tinha sinal de gente. Só via folhas forrando o chão e poeira amontoada nas guarnições das janelas fechadas.
As mangas amarelas dependuravam dos galhos da mangueira, entre as folhas. Subi pelo grosso tronco, procurei o galho mais carregado de fruta e fui na direção da extremidade. O ramo começou a vergar sob meu peso. Deitei o corpo, estendi os braços e consegui alcançar uma meia duzia de gordas mangas. Apanhei uma por uma e as joguei ao chão, procurando lançá-las sobre a parte mais coberta de folhas secas para que não se machucassem.
Passei a tarde chupando mangas, sentado ao pé da paineira e observando os esquilos correndo pelos galhos do abacateiro do fundo da casa.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ANOTAÇÕES DE LEITURA - 101

A RELIGIÃO E O SURGIMENTO DO CAPITALISMO

Título Original: Religion and the Rise of Capitalism

Autor: R. H. TAWNEY

Editora: Perspectiva - 1971

(Período da Leitura: 20/09/2008 à 31/12/2008)

INTRODUÇÃO

“O objetivo deste livro é investigar algumas linhas no desenvolvimento do pensamento religioso sobre as questões sociais e econômicas no período que presenciou a transição das teorias medievais de organização social para as modernas. Ele não conduz o assunto além do começo do século XVIII e não tem a pretensão de tratar da história quer da teoria econômica quer da prática econômica, exceto na medida em que a teoria e a prática estiverem relacionadas com mudanças na opinião religiosa. “

RESUMO

Tawney traça uma linha do tempo relativa a mudança no modo de pensar dos povos europeus desde os meados da idade média até o século XVIII, descrevendo a evolução da mentalidade religiosa de condenação a todo tipo de comércio e principalmente da usura, indo, lentamentente, cedendo às transformações que levaram a prática de negócios, a cobrança de juro de ato condenável, a tolerância e, finalmente, a elevação de tais atividades como uma espécie de dom de Deus.
Para Tawney a contribuição de Lutero foi pequena pois este rompeu com a igreja mas manteve postura extremamente conservadora quanto a atividade comercial e a usura. Calvino, segundo Tawney foi mais tolerante e até mesmo defendia a atividade de negócios, embora mantivesse um pesado constrole moral e religioso da sociedade:
“Era um credo que buscava não meramente purificar o indivíduo, mas reconstruir a Igreja e o Estado, e renovar a sociedade permeando todos os setores da vida, tanto públicos como privados, com a influência da religião”.
Mas Tawney resalta ainda uma diferença fundamental nas duas correntes protestantes: enquanto a corrente Luterana defendia uma mundo rural e estático, O Calvinismo formou-se entre as camadas urbanas, entre os homens do comércio, entre os trabalhadores de cidades populosas.
O mundo de Lutero “é mais uma economia natural, do que monetária, consistindo nas barganhas miúdas de camponeses e artesãos no estreito mercado do burgo, onde a indústria é realizada para a subsistência da familia”.
“Ao contrario de Lutero, que mirava a vida econômica com olhos de camponês e de místico, eles (os calvinistas) abordaram-na como homens de negócios, nem dispostos a idealizar as virtudes patriarcais de comunidade camponesa, nem a olhar com suspeita o mero fato da iniciativa capitalista no comércio e nas finanças”.
Mas, para Tawney, não foi o calvinismo o fator determinante para a revolução definitiva na maneira de se encarar a atividade comercial, financeira e industrial. A mudança mais profunda surgiu, não no continente mas no coração da sociedade inglesa, mais precisamente no seio do movimento religioso conhecido por “puritano”.
“O crescimento, triunfo e transformação do espírito puritano foi o mais fundamental movimento do século XVII. O puritanismo, não a secessão Tudor de Roma, foi a verdadeira Reforma Inglesa, e é de seu embate contra a velha ordem que emerge uma Inglaterra moderna.”
Para Tawney o espirto independente e o culto individual da religião, caracteristicas do puritanismo foram a porta de entrada do mundo econômico na vida da sociedade. A religião puritana era um manual de vida não só espiritual mas abrangendo todos os aspectos da existencia humana. O contato com Deus era uma ação individual e independente de outros indivíduos, de autoridades, de Papas ou Reis. A vida do puritano era uma relação pessoal com Deus e todos os dons oferecidos ao ser humano deveriam ser empregados para a Sua gloria e o trabalho, a diligência, a humildade, a frugalidade e a honestidade são as virtudes abençoadas por Ele.
A prosperidade advinda do trabalho diligente revela a benção de Deus. Era como se, de repente, ficar rico fosse a prova máxima de que a pessoa estava fazendo a vontade de Deus.
Era uma forma totalmente oposta da religião predominante na idade média que condenava as preocupações mundanas e principalmente o enriquecimento. Para o cristianismo primitivo o ser humano não devia se apegar aos preocupações terrenas a busca de riqueza num mundo provisório e pecaminoso. A missão de todo cristão é de preparar sua vida para a outra vida. O puritanismo revolucionou isso com a introdução da ideia de “vocação”. A vida terrena é, na verdade, a oportunidade que o ser humano tem de agradar a Deus pelas obras e não só com palavras. O cotidiano de cada um passou a ser fundamental para a salvação da alma. Estava aí a aprovação moral que o capitalismo precisava para prosperar e impor-se ao mundo.