Abel Aquino
Duas pessoas estão discutindo a questão do aborto, mais especificamente quem é a favor e quem é contra a regulamentação ou descriminalização do aborto. Um é contra qualquer tipo de aborto e o outro parece defender a regulamentação. Salta à vista a ignorância quanto a questão anterior de que estão, tanto um quanto o outro, considerando como dada a presença do Estado numa decisão pessoal, ou quando muito de costume ou religião. Para os conservadores e mesmo os conservadores que se dizem liberais, a bandeira da descriminalização do aborto é empunhada pela esquerda, pelos comunistas, pelos socialistas e quejandos. Mas, na realidade, quem defende a proibição total ou mesmo parcial do aborto, está pressupondo a existência de uma lei estatal para tanto, logo defendendo a participação do Estado na regulamentação do comportamento dos indivíduos, uma característica dos Estados totalitários. Alguns dos chamados liberais conservadores declaram-se liberais na economia, pelo regime de mercado, e conservadores nos costumes. Ora legislar sobre costumes é característica de regimes nada liberais, uma questão que precisam resolver.
Posso, portanto, dizer: não sou nem a favor nem contra a descriminalização do aborto, muito pelo contrário, não vou nem discutir isso pois cairia no nonsense puro.
Coloco a questão nos seguintes termos: vamos discutir em que momento da gravidez o aborto poderá ser considerado assassinato, obedecendo ao princípio da não violência, de não agressão ao outro. Em que momento da gestação o feto deverá ser considerado o outro?
Esse é o verdadeiro debate que poderemos travar sem cair para o absurdo, para o reino da incoerência. E não vamos chamar o Estado para ditar regras ou leis sobre isso. É um debate horizontalizado, de pessoas para pessoas, de comunidades para comunidades, de religião para religião. A decisão final poder não ser homogênea para toda a sociedade nacional, mas é a maneira de respeitar as decisões individuais e, o que é mais importante, as circunstâncias individuais. A lei Estatal se restringiria em determinar em que momento surge o crime e ponto final.
Poderíamos ter uma situação em que uma mulher católica - obedecendo a orientação do Papa - não admite aborto, mesmo que esteja com uma gravidez não desejada ou de risco. Outro, sem orientação religiosa específica, concordaria com a lei que diz que é crime abortar à partir do terceiro ou quarto mês de gravidez.
Para o liberal verdadeiro, a questão a ser posta é: aborto é uma decisão pessoal portanto particular que envolve a pessoa, sua família e suas crenças e religião. A partir de uma dado momento a gravidez será alcançada pela lei e o aborto deverá ser criminalizado como eliminação de uma vida humana, portanto assassinato.
O que complica é que os teólogos católicos, por exemplo, dizem que, à partir da união do óvulo com o espermatozóide, a célula já é uma vida. Outros pensarão diferente: que é vida à partir do momento em que o coração começa a bater, ou em que se formam os nervos e o feto pode sentir dor. O debate vai longe e, se for mantê-lo no campo das religiões e dos preconceitos, não se chega a lugar nenhum. O grande complicador é que todos defendem, no fundo, a presença do Estado nesse debate e aí o arbítrio aparece. Porque, com o Estado interferindo no debate, o lobby católico ou o lobby laico, qualquer um pode sair vitorioso na conquista do Estado para seu ponte de vista e os outros sairão perdendo. Poderemos convocar os cientistas e médicos para nos definir o momento de transição de um amontoado de células, do feto ser vivo. Mas muitos vão dizer que suas crenças, suas religiões estão acima da ciência e o problema não será resolvido.
Mas o que diz a ciência?
A vida como a conhecemos hoje é o resultado de uma complexa organização celular. Se eu retirar uma célula de meu corpo não estou tirando minha vida, posso tirar um milhão de célula de meu corpo e mesmo assim não eliminar minha vida. Vida é bilhões de células inter-relacionadas, especializadas e interdependentes umas das outras. Um óvulo e um espermatozóide são a semente da vida mas não é a vida. Tanto é que os homens e as mulheres lançam fora a maior parte de seus óvulos e espermatozóides que produzem ao longo da vida reprodutiva e ninguém briga por isso. Cientificamente, quando uma óvulo é penetrado por um espermatozóide cria-se uma reação em cadeia que leva a construção de uma nova vida. E isso leva um tempo. Quanto tempo? A ciência pode dizer com exatidão, tendo como princípio a momento em que o feto começa a reagir a estímulo, tem coração, cérebro e nervos sensíveis. A partir daí pode ser considerado um ser humano.
Quando analisamos o que é a morte, compreendemos melhor essa questão. A morte é confirmada pelo médico quando cessa toda atividade biológica, quando não há sinal de atividade cerebral principalmente, ou seja, quando todo o conjunto de bilhões de células deixam de se interagir. Nosso corpo continua com todos os componentes intactos, mas não há vida porque não há atividade metabólica. Continuamos com o coração, o cérebro, as pernas e tudo o mais, porém já não temos vida; somos apenas um monte de água, carbono, cálcio e minerais. Uma reunião de células não é suficiente para se considerar vida. Um fígado não é vida sem o resto do corpo. A vida começa quando as células se dividem, se diferenciam, iniciam atividade especificas e reagem ao meio ambiente.